Celso Furtado – Hors D’oeuvres (Diários intermitentes)

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Rosa Freire d’Aguiar

Fina iguaria com sabor de saudade

Os “Diários intermitentes” de Celso Furtado, resgatados integralmente de seus arquivos pessoais, reúnem anotações deixadas por ele ao longo de 65 anos –

desde 1937, quando adolescente em João Pessoa ensaiou as primeiras anotações, até 2002, dois anos antes de morrer no Rio de Janeiro. Se Celso Furtado não foi propriamente um “diarista” assíduo, as notas por ele tomadas em cerca de cinquenta cadernos e agendas foram uma maneira de registrar momentos marcantes de sua vida, impressões de viagens, encontros com políticos e intelectuais com quem conviveu no Brasil e no exterior. Entre outros, Juscelino Kubitschek, Ulysses Guimarães, Roberto Campos, Fernando Henrique Cardoso, Nicholas Kaldor, Fernand Braudel, Jorge Amado, Henry Kissinger. Aí estão as notas que tomou quando, jovem tenente, integrou a Força Expedicionária na Segunda Guerra Mundial. A elas se seguem os dez anos em que, como diretor da Divisão de Planejamento da Cepal, palmilhou e morou em países da América Latina; os combates travados no Nordeste para a implantação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste; os vinte anos de exílio na França; e a reinserção na vida política brasileira, nos anos 1980, desde a redemocratização até sua atuação como embaixador e, depois, ministro da Cultura. Tem-se em “Diários intermitentes” um precioso material inédito, que completa a obra autobiográfica de Celso Furtado e revela facetas mais pessoais desse economista e intelectual, protagonista privilegiado da história do Brasil, da América Latina e da Europa, na segunda metade do século XX.

Com apresentação, organização e notas de Rosa Freire d’Aguiar, prefácio do historiador econômico João Antonio de Paula, os “Diários intermitentes” são publicados pela Companhia das Letras. A eles se seguirá um volume com uma seleção da riquíssima correspondência de Celso Furtado, previsto para meados de 2020, quando se comemora o centenário de seu nascimento.

Rosa Freire D’aguiar

Recife, 13.3.38

Cheguei a Recife como pretendera, a 10. No dia 11 matriculei-me no Ginásio [Pernambucano]. Tudo se sucedeu do melhor modo possível. Estou maravilhosamente hospedado. Em um ótimo quarto. Apelidei-o Reino de Sabá e com toda razão. E o ócio em mim é a maior força. Escrevo forçado.

Recife, 5.7.38

As aulas recomeçaram hoje. Tive ocasião de ver minhas notas. Vejamo-las: Economia Política e Estatística: 100; Biologia: 90; Psicologia: 90; Literatura: 90; História: 80; Latim: 75. Média: 87,5. Sei que podiam ser melhores. Em todo caso, esse 100 que por aí apareceu foi o único dos cursos pré-jurídicos e a média a melhor de todos os cursos pré-acadêmicos do Ginásio.

João Pessoa, 1938

Livros lidos em 1937-38. “O Guarany”, J. de Alencar; “Diva”, J. de Alencar; “Casa-grande & Senzala”, G. Freyre; “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, M. de Assis; “Quincas Borba”, M. de Assis; “Joseph Fouché”, S. Zweig.

A bordo [do navio de guerra General Meigs], 21.2.45

A grande viagem vai terminar esta noite. Amanheceremos em Nápoles. Para mim ela nada mais foi que um passeio. Soube mais de uma vez que passara pelo perigo submarino, entretanto nunca este navio me pareceu menos seguro que a minha casa. Ocorreu-me, aliás, ao pensar nisso, algumas considerações sobre o medo. Ele só existe em mim como estado reflexivo. Penso, por exemplo, na hipótese de parar de viver por um ato de estupidez ou por um acaso estulto; penso na insignificância dessa morte no quadro geral dos acontecimentos e ao mesmo tempo na importância oculta que talvez encerre. É que eu ainda não esvaziei o copo que me cabe sorver, ainda constituo um mistério para mim mesmo; se eu chegar a ser um homem excepcional, no futuro, isto não constituirá surpresa para mim mesmo.

Paris, 28.6.47

Estou comprando toda a bibliografia essencial marxista em francês. São traduções muito benfeitas, algumas que ainda foram revistas por Marx ou Engels. Comprei as obras filosóficas e políticas completas de Marx (16 vols. pequenos), obras de Engels (17 vols.) e uma parte das obras econômicas de Marx. Pretendo adquirir a correspondência completa de Marx-Engels. Afora isso comprei ainda uns 30 volumes de obras marxistas ou de crítica ao marxismo.

Natal, 24.5.59

Cheguei a Natal para acompanhar os trabalhos do encontro do Bispos do Nordeste. Puseram-me de imediato num palco para enfrentar perguntas de uns prelados. Nunca imaginaria, quando comecei a tratar de desenvolvimento econômico, há pouco mais de um decênio, que essa matéria passaria a ser centro de preocupações até de sacerdotes. Quando saí, o prof. Pioget me disse: “Mais vous évangelisez les évêques…”. Sinto-me, na verdade, como se tivesse um novo Evangelho nas mãos. E a grande preocupação desses bispos comigo não deixa de ser uma comprovação de que o novo Evangelho é poderoso. E de que seu profeta assusta o rebanho…

Recife, 27.12.59

Vai terminando o ano. E que ano. A 6 de janeiro Juscelino nos reunia em Petrópolis para trocar ideias sobre o Nordeste. A 15 de dezembro ele sancionava a lei criando a Sudene. A batalha foi ganha em toda a linha.

Paris, 14.7.70

Este ano estou batendo um record que não deixa de dar satisfação a um trabalhador intelectual que não dispõe sequer de uma secretária, que datilografa todas as suas cartas e prepara sozinho todos os textos: publico nove livros em línguas estrangeiras, 3 em francês, 2 em inglês, 2 em castelhano e 2 em italiano. À exceção do italiano, revi e aprovei todas as traduções. Alguém dirá que isso é uma loucura, que mais vale flâner no Quartier Latin…

Rio, 18.7.84

Tive um encontro, já tarde no dia 11, com F. H. Cardoso, José Serra, Roberto Gusmão e Maria da Conceição. Estes dois estão em posições opostas. Gusmão pensa que o Tancredo será um presidente “do PMDB”, com um compromisso claro com o partido. (Depois F. H. me diria: “Está tudo muito bem, só que para o Gusmão o PMDB é ele mesmo”). O Serra está pensando em ocupar “espaços do poder”, em preparar o futuro. F. H. sente-se mais próximo da posição do Serra, não quer se envolver com um governo que vai ser demasiado compósito. “Trata-se de uma transição que nos cabe dirigir, mas que não foi um projeto nosso.” No dia seguinte pela manhã, quando tomávamos café, eu perguntei a ele: “Você aceitaria ser ministro das Relações Exteriores desse governo?”, Ele respondeu que sim. “Esse seria o único cargo que eu aceitaria.”

Brasília, 23.7.87

Despacho com o Presidente. Pela primeira vez falou-me da necessidade de preservar a unidade do PMDB, como forma de assegurar a transição e atingir o objetivo de reconstitucionalização. E disse categoricamente: “Isso de mandato é secundário. Para mim o que importa é que a Constituição seja votada. Se tenho que voltar para casa mais cedo, melhor”. Antes, a propósito de um dicionário de espanhol que lhe entreguei, em atenção a uma encomenda sua, disse que lamentava ter pouco tempo para ler, se bem que lesse pela manhã cedo (acorda às 5h) e pela noite antes de dormir. Estava informado do trabalho que eu havia feito na Convenção do PMDB. Referiu-se a Covas como sendo um político menor, capaz de provocar uma crise por motivos subalternos. Mostrou-me o resultado de uma pesquisa, ao final do primeiro mês do Plano Bresser, com um forte aumento (de 20 para 40%) de sua credibilidade como condutor da política econômica.

Rio, julho 2000

Sabemos muito pouco sobre o custo real do que chamamos desenvolvimento econômico. Por exemplo, em termos de destruição de recursos não renováveis minerais, dificilmente renováveis, como a cobertura vegetal e os solos aráveis, e os custos em seres humanos que decorrem da estrutura social, como no caso dos homens que são usados apenas como força de trabalho. O verdadeiro desenvolvimento se traduz em investimento no homem.

“Diários Intermitentes”, de Celso Furtado

Organização, apresentação e notas: Rosa Freire d’Aguiar (rfafurtado@gmail.com)

Edição ilustrada, 492 p.

São Paulo, Companhia das Letras, lançamento 8 de outubro 2019