Delicadezas minhas e de Elizabeth Bishop

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Zuleika Borges Torrealba,

 

As gotas de orvalho refletem os fragmentos da mata cerrada. Uma cor de esmeralda, a mais verde desse mundo. Nada além da imensidão daquele mar de ardósia e seus relevos, ondas que batem na pedra e explodem em espuma sôfrega. Um perfume de orquídeas derretidas como em um quadro de Dalí. O mar é uma floresta que cerca desejos abissais. Mas, com determinação, você segue, sempre na mesma direção. E no fundo do oceano improvável, avança em passo firme no piso ora árido, ora úmido, em meio a gigantescos arbóreos. Ávida pelo mergulho no mar lúdico da serra, exalando a fragrância do eucalipto e com um surpreendente gosto de nêspera salpicada de flor de sal, salta de um trapézio nas nuvens. Deixa o corpo se levar, e o sol inclemente daquela altitude pincelar de bronze a face. Bem lá no fim do percurso, o acaso e o milagre cumprem o prometido. É o ponto de chegada. Com um meneio do rosto você vislumbra o remanso da sua vida: a casa de Lota Macedo Soares e Elizabeth Bishop, doravante chamada aqui neste texto de Fazenda Samambaia, seu nome corrente e de registro em cartório. “Essa casa vai ser minha, a história dessa casa vai ser minha.”

 

“A arte de perder não é nenhum mistério

Tantas coisas contêm em si o acidente

De perdê-las, que perder não é nada sério”*

 

Fui adolescente nos anos 1950, uma adolescente no pós-guerra. Então minha geração sobrevivente é constituída de gravetos, galhos secos. Alguns são rijos, mas estão prontos a estalar, antessala da quebra, aperitivo da finitude. Minha história com Elizabeth é cercada de gerações findas, galhos quebrados. Amigos que tinham 20, 30 anos a mais naquela época teriam mais de 100 anos hoje. Bem mais velhos e eram jovens. Muitas vezes converso com paredes de outro tempo. Pareço ouvir a voz do príncipe da Dinamarca e o seu dilema íngreme: conheci Elizabeth ou não conheci Elizabeth? Estarei vivendo o seu sonho pertencido? O sentimento de dualidade me persegue e me impulsiona pela vida. Serei um fantoche, cujo porvir delineado está em mistérios inalcançáveis? A aquisição dessa casa tornou cristalina a ideia de que eu tinha uma vida predestinada; a sensação marmórea de que as coisas estão dispostas esperando a minha chegada. Para mim o Rio de Janeiro nunca foi a Pasárgada, mas, sim, Petrópolis, onde, aos 26 anos, edifiquei, em cimento edulcorado, a catedral do meu casamento.

Eu já conhecia meu então namorado e futuro esposo, Gonçalo, porque ele era filho do meu mestre mais querido, o jurista Hermes Lima, que também foi ministro do Supremo Tribunal Federal, posteriormente cassado pelo regime militar. Para mim, era apenas o “meu professor”. Mas Petrópolis amalgamou o amor de toda a minha vida e me abriu seu coração, com as veias enraizadas naquela terra verdejante. A Samambaia era o poema da minha iniciação em Elizabeth, o maior de todos, escrito, é bem verdade, com o amor de Lota.

Curioso, contudo, como os pássaros nos levam de um canto a outro. Os anos se passaram para que eu, vicejante, finalmente adquirisse Samambaia, em 31 de agosto de 1977. Durante muito tempo, então, o fogo da lareira crepitou. E a Fazenda de Bagé surgiu como um somatório de todos os desejos, um fino bordado do que eu mais quis na vida. Ao mesmo tempo granito e renda diáfana, sonhos, nuvens, concreto, pasto, relincho, terra vermelha, resina, vinho, curtume, cheiro das gotas do sangue de ovelha estalando no braseiro que nunca mais se apagou. Bagé pôs por terra a hipótese de pretensão: eu era realmente predestinada.

 

*“Perca alguma coisa todo dia. Aceite austero

A chave perdida, a hora gasta bestamente.

A arte de perder não é nenhum mistério.”

 

Conheci Elizabeth como se ela jamais estivesse ao alcance das minhas atenções precípuas. Tinha ido a Petrópolis para refazer o namoro com Gonçalo, que havia subido a serra para a casa dos pais. Fui para a casa de um amigo comum, na qual estavam hospedados Jurema e Zé Guimarães, um jornalista famoso da época, responsável pela primeira página do segundo caderno do Correio da Manhã, que circulava aos domingos. Posteriormente, os dois se tornariam padrinhos do meu enlace matrimonial. Mas foi nessa tarde que eles me levaram para tomar um chá com Maria Carlota Constallat de Macedo Soares, a Lota, e Elisabeth. Conversamos com o encantamento medido na justa conta. Não foi ainda dessa vez que a Samambaia resplandeceu na pletora da minha vida. Muitos dias se findariam e recomeçariam até que eu tomasse posse do meu castelo. Um rito de passagem. Mas reacende sempre minha memória a resposta da Jurema, no chá de caridade promovido pela Belita, esposa do então prefeito Marcos Tamoio. Ao percebê-la em uma das filas, gritei: “Juca”, que era o apelido dela, “vou assinar a casa da Lota hoje”. E ela respondeu: “Ora, é natural você comprar a fazenda, pois você adorou aquele lugar.”

Fiquei perplexa com a espontaneidade dela. Tudo tinha se passado em tão pouco tempo. Há apenas 30 dias eu tinha subido pela primeira vez a rua Humberto Ravigatti, zona mais popular daquela região da Samambaia. O sol dançava entre os eucaliptos, que hoje somente vivem nas minhas recordações. Caminhando por entre aquelas árvores guardiãs, cheguei ao fim do mundo, na casa de uma senhora que logo se transformou em uma grande amiga. Suspeitei no primeiro olhar que ela injetaria magia na minha vida. Sua bendita graça atendia por Amélia Isolette de Oliveira. Era uma famosa criadora de cães da raça Cocker Spaniel e filha do Djalma Ulrich, que foi um dos tenentes revoltosos do Forte Copacabana. Ela tinha uma biblioteca francesa fabulosa e, como havia frequentado intensamente a boemia carioca, contava histórias incríveis. Fiquei completamente fascinada.

Pois dias depois, as Parcas ainda não tinham tecido sequer um nó e o destino me alcançou na voz de Isolette: “Zuleika, tem uma casa aqui em cima que foi esculpida exatamente como seu rosto, é a sua cara.” Como queria comprar uma casa na serra, eu já tinha marcado uma visita a outro sítio, em Araras. Mas Isolette insistiu: “Não chegue muito tarde, para você ver a beleza de vista que tem aqui.” Às 16:30h em ponto, lembro-me como se fosse hoje, eu entrei na Samambaia. E foi a paixão mais arrebatadora da minha vida. Tornamo-nos um só corpo.

 

*“Depois perca mais rápido, com mais critério:

Lugares, nomes, a escala subsequente

Da viagem não feita. Nada disso é sério.”

 

Há razões que só a poesia conhece. Morango e topázio. Luar em calda. Hemisfério do amor perfeito. Suavium estalando no firmamento. Dilúvio de rouxinóis. Rubiáceo que te quero mais verde. Samambaia folheada de vagalumes. Pois minha vida foi prateada por imagens como estas. Mas falemos da casa da fazenda. Quando visto por fora, o recanto de Lota e Elizabeth era uma carícia, mas ao entrarmos pela primeira vez na casa, a visão era a de uma criança abandonada, pedindo proteção. A venda da Samambaia por Elizabeth, após a morte de Lota por suicídio, foi um episódio no qual não faltou um oceano de dor entre os sobreviventes amorosos e leais. Mas há sempre quem lucre com o tormento. E por muitos anos, a “Marieta”, Maria Elvira Macedo Soares, irmã da Lota, de quem me tornei amiga, carregou consigo o espinho da dúvida sobre o critério da venda e partilha de bens das duas companheiras de vida e o sentimento real dos herdeiros.

Posteriormente, diversos proprietários apunhalaram a casa em diversas partes do seu corpo. A galáxia da Samambaia teve muitos astros e asteroides, todos abriram sulcos ao se colidirem com meu futuro pequeno reinado. Lembro que um dos donos foi o neto de Joseph Duveen, que consta nos verbetes enciclopédicos como o maior marchand do mundo. Não restam boas lembranças da sua passagem por aquela moradia órfã. Depois de Duveen, outros furacões passaram destroçando aquela paragem. Compramos a fazenda do filho do dono da Livraria Kosmos. Não me perguntem o nome de ambos, porque minha memória, hoje, é uma nuvem passageira, ainda que em certos momentos seja rigorosa e seletiva. A casa estava devastada. Mas não se sabe bem quem torturou mais o recinto. Herdeiros e proprietários consecutivos, todos contribuíram com seu quinhão. Acredito piamente que aquela casa esperava por mim. O amor de Lota e Elizabeth, que, em uma esfera metafísica onde o real se entrelaça com sua antítese e germina a síntese de um novo real, pavimentou a minha chegada a Samambaia. O real, diga-se de passagem, é só o amor. Na antiga casa, deve existir um verso falando do encontro de nossas almas e sentimentos sublimes. Há razões que só a poesia conhece.

 

*“Perdi o relógio de mamãe. Ah, e nem quero

lembrar a perda de três casas excelentes.

A arte de perder não é nenhum mistério.”

 

Em um mundo bizarro, exatamente inverso, Elizabeth teve a sua Bagé antes da Samambaia. Sua outra epifania foi a cidade histórica de Ouro Preto, onde viveu na Casa Mariana, quatro paredes e um jardim em homenagem à poeta Marianne Moore, sua amiga e referência. Viveu feliz, na medida do impossível que se conhece como felicidade, com seu gato de estimação, resmas de papel, lápis afiados e algumas muito benquistas garrafas de whisky. A gloriosa permanência de Elizabeth nessa terra morena, entremeada de floradas e ao som do rangido das rodas do carro de boi, beira o surreal. A poeta, quando na sua primeira visita, experimentou o caju, obscena combinação da fruta com a castanha. Teve a maior intoxicação da sua vida e por aqui se acomodou. Bendito caju!

Mas a vida da poetisa de doce nada tinha, era um pote de cajuada repleto até aqui de cica. Elizabeth respirava sofrimento. Seu pai morreu muito cedo. Sua mãe faleceu em um hospício. Seus avós foram buscá-la na Nova Escócia, quando ela tinha cinco anos e a sua triste progenitora iniciara um processo célere de loucura. Esse momento da sua vida foi eternizado em um poema chamado “O grito”, tal qual o quadro de Edvard Munch. Talvez seus melhores momentos tenham sido no átimo final da sua infância e início precoce da adolescência, quando foi criada pelos avós no meio rural. Seu único livro de prosa reporta com carinho o cheiro da umidade da terra, o tio ferreiro, a vaquinha que ela levava ao pasto e outras histórias singelas dedicadas ao entorno e à família. É um livro lindo, que resiste, impávido, à tormenta de feridas dos escritos mais maduros de Elizabeth. Há palavras da poetisa que ninguém sutura. Cicatrizes que não fecham nem cerzidas com a linha do tempo.

 

“Perdi duas cidades lindas. Um império

que era meu, dois rios, e mais um continente.

Tenho saudade deles. Mas não é nada sério”*

 

Tudo o que dizia respeito a Elizabeth passou, aos poucos, a fazer parte do meu interesse. Tenho um baú de guardados que remetem a ela, diretamente ou de alguma forma. Li todos os seus textos e poesias, no original e traduções. Estive uma vez em sua companhia, mas minhas recordações desse acontecimento se encontram em algum compartimento insondável. Curioso que durante muitos e muitos dias tentei resgatar o encontro na memória, mas sem êxito algum. Misteriosos caprichos da lembrança. E Deus me deu a missão de reerguer a Samambaia. Nos primeiros dias de 1978, ainda respirando a celebração do Ano Novo, eu já estava lá, com operários cedidos por meu pai – que tinha uma oficina para reparo naval das suas embarcações –, colocando todos para lavar o chão. Preparava a recepção da minha família. Lembro-me de que participei do mutirão com desenvoltura, com uma mangueira nas mãos e pisando no chão molhado. Foi um épico. A esposa do Paulo Ferraz, do Estaleiro Mauá, Regina Ferraz, disse-me na época: “Zuleika, você não comprou uma casa, você comprou um Jardim Botânico.”

Em meio àquele enorme frenesi, desci em direção à cidade. Queria caminhar um pouco, respirar! Por um desses acasos que de acaso nada tem, entrei em um armarinho, uma dessas vendinhas ingênuas do interior, até pitorescas. Foi então que, como se fosse guiada, minha vista deparou-se com um espelhinho desses bem ordinários, de fundo azul, com o seguinte escrito: ”Deus esteja em nossa casa.” E eu disse aqui comigo: “Nossa Senhora, vou colocá-lo na entrada da casa.” O engraçado é que sou agnóstica convicta. Mas descobri que existe um agnosticismo místico, tão mais interessante quanto mais contraditório. É a tal dualidade que, paradoxalmente, me mantém íntegra. E a casa da Samambaia foi sendo novamente talhada sem perder a essência de Lota e Elizabeth. Chamei o arquiteto Ítalo Camporito, meu amigo na época, para nos ajudar com as mudanças no interior. Tirei um pouco da entrada do escritório. Fiz closets. Mudei o piso e tirei a janela que ia até o chão e trazia o risco de alguma criança cair lá de cima. Para fazer a restauração, busquei as ideias do sócio do Camporito, que executou o projeto da casa. Foi uma revolução.

Nunca achei que o quarto onde Elizabeth escrevia exalasse poesia. A casa, como um bloco vivo, esta, sim, era pura poesia. No alto do terreno, tinham transformado seu escritório de trabalho em uma casa de caseiro abandonada, horrorosa. Ela já estava com sua estrutura original alterada, pois a varanda tinha se tornado uma salinha. O neto do marchand assassinou o acabamento da sustentação, que era de razoáveis colunas de canos. Ele recobriu-as de pedras em um acinte à harmonia. Fez mais: forrou a sala com tábua de pinho de churrascaria barato; os banheiros foram crucificados em fórmica. Fiquei massacrada. Tinham conspurcado a casa. E só restava arregaçar as mangas. Arrumei com cuidado aquele lugar, que de certa forma se tornou um relicário. Até hoje, uma romaria de acadêmicos, discípulos e estudiosos da vida da poetisa pedem licença para visitar a Samambaia. Permitir, seletivamente, essas visitas faz parte do meu baú de guardados de Elizabeth.

 

“Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que eu amo)

Não muda nada. Pois é evidente

que a arte de perder não chega a ser um mistério

Por muito que pareça (escreve) muito sério.”*

 

Meu encontro com Elizabeth nunca teve fim. Mais de uma década após a aquisição da Samambaia, e apaixonada pela história dela com Lota, vim a conhecer e me tornar amiga de Alice Methfessel, ex-secretária e herdeira da poetisa, que morreu recentemente. Fizemos camaradagem. Convidei-a a visitar o Brasil e levei-a à Bahia. Conversávamos muito sobre a inteligência da Elizabeth. Alice conheceu-a quando ela foi lecionar em Harvard. Elizabeth já estava começando a ficar doente e Alice, que cuidava do prédio dos professores, passou a tomar conta da futura grande amiga.

Elizabeth, segundo a própria Alice, dizia: “Essas coisas intelectuais não são para você.” Em parte sim, em parte não. Alice conhecia bem a obra da sua benfeitora. Ela foi herdeira de todo o direito autoral de Elizabeth e do seu apartamento em Boston. Conhecemos Alice, eu e meu marido, em um inesquecível jantar em um restaurante japonês, regado a memórias da Elizabeth. Antes de a poetisa falecer, Alice me confidenciou uma conversa que tinha tido com sua dileta amiga. Disse a Elizabeth que eu era muito parecida com ela. A reação de ciúme disfarçado da sua companheira fez com que nos afastássemos. Mas foi brisa que passa.

Tempos não tão distantes depois, em uma viagem minha e do Gonçalo a Cap Cod, nos divertimos a valer. Jantamos juntos e depois alugamos um barco para assistirmos às baleias bailarem no mar. Depois dessa viagem, Alice apareceu em Nova York, onde passávamos uma temporada. Fomos ao circo e depois a uma livraria na Quinta Avenida. Ela então me deu um livro de presente, de um cachorrinho, My dog Tulip, um livro lindo que ela lia quando era criancinha. Mas a maior revelação, ainda nesse dia, foi quando Alice me disse que o poema “The art of losing”, quintessência da arte da Bishop, não foi autocentrado. Elizabeth escreveu-o para Alice, que tinha recebido um pedido de casamento. E isso foi segredo até hoje. Vida que passa, eis-me com Alice passeando no calçadão de Ipanema, em uma vez em que a recebi em minha casa. Saímos para dar uma volta com meu cachorrinho. E novamente cometi uma indiscrição daquelas que me caracterizam. De chofre, perguntei a Alice como tinha sido viver com uma mulher tão inteligente, mas também tão mais velha do que ela. Elizabeth estava uns 30 anos à frente da sua parceira. E ao mesmo tempo como estaria sendo privar com a atual companheira, tão desprovida de graça e tão pálida intelectualmente. Alice esfriou. Nossa relação foi se extinguindo, lenta e inexoravelmente, e nunca mais voltaríamos a nos falar ou corresponder. Tenho com meus botões que o ácido arsanílico que envenenou nossa relação foi injetado do veio ofídico da sua enamorada. Mas o sol voltaria a nos esquentar, a todos. Elizabeth versejava por nós.

 

“Juntas, coladas, a noite toda

as amantes estremeceram durante o sono,

próximas como as páginas do mesmo livro

que se leem no escuro.

Cada uma sabe a outra de cor, minuciosamente

da cabeça aos pés.”**

 

Texto de Luiz Cesar Faro

 

* Trechos do poema “A arte de perder”. Tradução de Paulo Henrique Britos.

** Trecho de “O poema secreto”.