Prestando contas ao monstro

Cesar Caldeira, Advogado
FAPERJ, sexto andar, 11h50.
– Gostaria de entregar minha prestação de contas de um Projeto.
Insight Inteligência - artigos e ensaios fora da curva
– Hum…
– A senhora poderia me informar como é que devo fazer?
– O senhor está agendado?
– Não. Mas eu preciso prestar contas. Amanhã é o último dia para o tipo do Projeto que fiz – continuei mostrando o pacote.
– Hum…
– Posso protocolar esta documentação?
– Protocolo é naquela sala ali.
Fui logo entrando na sala.
– Posso protocolar esta prestação de contas?
– Prestação de contas é na Auditoria. Fica logo ali.
– Ótimo. É lá que eu entrego este pacote?
– Bom, eles avaliam este material. O senhor passou pela Mesa de Informações?
– Sim; aquela moça não me disse onde eu deveria entregar este pacote de documentos. O prazo da Prestação de Contas termina amanhã!
– Meu senhor, fique calmo! Está dentro do prazo. Isso é importante! Mas nós não protocolamos Prestação de Contas. Sugiro que o senhor vá conversar com um dos auditores. Peça à secretária para ser atendido por eles.
– Gostaria de obter informações sobre prestação de contas – dirigi-me à Secretária Hum.
– Hum…
– Tem banheiro por aqui?
– Basta ir por este corredor e dobrar a primeira à esquerda.
Quando voltei à mesa, havia um rapaz parecido com o Walter, coautor do pacote.
– O senhor tem alguma dúvida sobre a Prestação de Contas do seu Projeto?
– Todas as dúvidas. Mas, principalmente, gostaria de entregar todos estes documentos – disse, mostrando notas fiscais e muitos carimbos.
– Ah! O senhor está agendado?
– Não. Vim pessoalmente prestar contas. E entregar…
– O senhor pode me acompanhar.
Ficamos numa das três mesas. Era um avanço significativo porque o ar-condicionado funcionava plenamente. Saí de uma sensação térmica de 50 ºC para uma fria sensação de que aquele auditor podia até me dar um papel carimbado e assinado com letra legível.
– Estes são os documentos que trouxe.
Ele olhou a primeira página. Virou rapidamente para a segunda: Modelo II – Balancete de Prestação de Contas.
– O senhor não seguiu o modelo da FAPERJ.
– Na verdade, pensei que tinha seguido. É certo que o professor Walter criou uma tabela Excel magnífica! Tem até todos os números dos cheques!
O auditor abriu a folha sobre a sua mesa. Fiquei esperando um elogio à criatividade dos desesperançados pesquisadores.
– O senhor quer um copo d’água?
– Agradeço. Está muito calor e parece que…
Ele se levantou e foi pelo corredor para o lado quente do andar. Como podia não se admirar a Tabela? Qualquer surfista diria: Maneiro! Saquei tudo! Comecei a imaginar que estava na onda errada… um caixote. Copacabana, 1962. Embolado em mim mesmo, perna para lá, braços para cá, engolindo água, areia.
– O senhor está se sentindo bem? A água vai ajudá-lo.
– Certamente. Porém, a Tabela não vai me ajudar, não é?
– Do ponto de vista administrativo, não é adequado se colar uma folha que se abre. Tudo isso vai ser um processo. Esta parte que se abre poderia ser arrastada para a página principal. Tudo numa folha A4.
Areia nos olhos, água salgada na garganta. Peguei a onda errada cinquenta anos depois.
– Vamos voltar ao Modelo II. Professor, na coluna Débito só devem aparecer os totais gastos com despesas correntes e de capitais. Se não for feito assim, cairemos no Modelo III, onde se encontram discriminados os itens.
Eu estava tentando anotar.
– Vamos voltar ao Termo de Outorga.
– Olhe, são duas parcelas!
– Ah! Então são R$ 34 mil que devem aparecer nos totais finais do balancete. Na parte referente a Crédito, a outorga foi de R$ 21 mil para Despesas Correntes e de R$13 mil para Despesas de Capital.
– Somando, dá R$ 34 mil de Crédito – completei triunfante.
– Agora, voltando à coluna Débito. O TED fica no item CPMF e outras taxas. Despesas cobertas com recursos do outorgado são R$ 313,06.
– É uma compra com cartão feita na Livraria Saraiva. Como não se permite o uso de cartão, essa perda foi “sublimada”, como diria o deputado Roberto Jefferson.
– Em tese, esses livros são seus!
– Que Deus me acuda! Esses livros foram incorporados pelo patrimônio da Universidade. E aqui temos assinatura legível e um carimbo que tem até a data da Portaria que designa o chefe da Divisão do Patrimônio. Em seguida, está o Termo de Transferência, em três vias, com a assinatura em cada página da pró-reitora de Administração da Universidade e seu carimbo. Eu também assinei cada página. Só não tenho carimbo – lamentei.
– Isto está OK. Mas voltemos ao Modelo II. Teve rendimento de Aplicações Financeiras?
– Não. Ficou tudo na conta corrente do Banco Itaú.
– O senhor não transferiu a conta em janeiro para o Banco Bradesco?
– Não. No Projeto está indicado que deveria ser aberta uma conta no Banco Itaú. No encerramento do projeto, o Saldo Remanescente foi para o Banco Bradesco. Aqui estão os documentos.
– Em janeiro de 2012, os pesquisadores receberam uma mensagem para transferir em quatro dias para a conta FAPERJ a ser aberta no Bradesco.
– Essa mensagem foi enviada em janeiro, mês de férias! Não recebi. Não tive conhecimento.
– Isso deu muita confusão.
– Fiz o que estava no contrato original. Trabalhei com o Banco Itaú e ao encerrar…
– Estou vendo que está no Banco Bradesco. Isto entra na coluna Débito do Modelo II – Saldo Remanescente Positivo: R$ 7.227,71.
Recapitulando: na coluna Débito somam-se Despesas Correntes com Despesas de Capital mais o TED. Depois se subtrai Despesas Cobertas com Recursos do Outorgado – R$ 313,06. E, no fim, soma-se o Saldo Remanescente transferido para o Bradesco. O total tem que ser R$ 34 mil. Se não for, ocorreu erro.
– Cabe revisão da prova, ou segunda época?
– Professor, o Débito Final deve ser R$ 34 mil. Pela sua Tabela, parece que está certo. É indispensável, no entanto, preencher o Modelo II.
– Sim, senhor! Entendi que estou enrolado.
– O senhor está indo bem. Porém, não preencheu corretamente o Modelo II.
– Estou no Purgatório Contábil.
– A parte do Termo de Transferência e Entrega de Bens e do Patrimônio parece correta.
– E eu tenho as Cartilhas!
– Na Prestação de Contas não cabem as Cartilhas.
– O Projeto envolveu a produção de Cartilhas… Imaginei que vocês gostariam de ter as Cartilhas.
– A Auditoria de Prestação de Contas não precisa das Cartilhas. O professor pode doá-las à editoração da FAPERJ.
– Não parece muito claro. É um dever?
– Não. Eu vou chamar o Marcelo para dar uma palavra com o senhor. Esta nota fiscal de R$ 15 mil…
– A nota fiscal banhada de sangue…
– O quê?
– Uma piadinha interna no desenvolvimento do Projeto.
– Na Prestação de Contas, só precisamos da primeira via. Pode retirar a nota de cor amarela.
E o talão de cheques deve ficar colado em folha à parte.
Continuei diligentemente anotando o que conseguia.
– Sobre essas notas fiscais, ocorre o seguinte: vamos precisar de todas as notas fiscais eletrônicas.
– De papel não serve?
– É uma nova lei que veio a nos exigir a nota eletrônica.
– Isso está presente nas regras de Prestação de Contas da FAPERJ? Não vi.
– Não está presente ainda.
– Que alívio; já estava imaginando que chegou o tempo de seguir regras não conhecidas.
– É… Vai ser necessário ir ao Portal da Fazenda para cada uma dessas notas fiscais que tenham DANFE, visualizar o documento e digitar, em cada uma, 43 números, estes aqui – mostrou na nota de papel. – E, depois, imprimir e colar em folha A4 após essas notas. Pode atestar na parte da frente da nota eletrônica.
– Caramba, quem inventou isso?
– Veio facilitar nosso trabalho e dar mais segurança.
– A quem?
– A todos! Agora não se pode mais dizer que a nota fiscal foi extraviada. Ela existirá para sempre por meio desses 43 números.
– Pois é, 1984 foi há 28 anos.
– O quê?
– É um livro da época em que se liam livros de papel, de um autor chamado George Orwell. Fizeram até um filme. Deve existir o livro virtual… Vale a pena lê-lo.
– Hum…
Chegou um rapaz.
– Sou da Editoração.
– O professor fez Cartilhas num Projeto.
– São essas aqui – mostrei as Cartilhas.
– Podemos distribuí-las para bibliotecas por todo o Estado.
– No Projeto realizado elas são distribuídas na comunidade do Dona Marta, para que aqueles que têm problemas jurídicos possam obter assistência na Universidade.
Outra pessoa começa a falar com o auditor.
– Se o senhor desejar, estaremos prontos para ajudar na distribuição das Cartilhas em todas as áreas que têm UPP.
– Vou consultar os advogados do Núcleo.
– Feliz Ano Novo!
– Para você também.
– É mais uma possibilidade para distribuir as Cartilhas – diz o auditor.
– Não faz parte da Prestação de Contas?
– Não faz. É tão somente uma sugestão. Voltando às notas eletrônicas: ficou claro como proceder?
– Ficou. Mas isso vai funcionar?
– Certamente.
– E eu tenho até amanhã para entregar o Modelo II e as notas eletrônicas?
– Não é bem assim. Eu dei as orientações para a Prestação de Contas do Projeto. E mesmo se fosse o caso, talvez não pudesse ser amanhã. Aquele servidor que veio falar comigo durante nossa conversa me informou que o sistema de internet da FAPERJ não está funcionando hoje.
– Será o calor? Período pós-natalino…
– Não sei. Não estou conseguindo trabalhar na rede. Mas veja a situação pelo seu lado mais positivo: talvez ao atendê-lo tenha esclarecido algumas dúvidas e superado algumas dificuldades.
– É evidente que sim. Apenas estive perto de enfartar. Fora esse detalhe, o encontro foi revelador de um universo que eu desconhecia.
– Ótimo. Então vamos agendar a sua auditoria. Não se assuste com a data – disse ao se levantar.
Fiquei imaginando voltar para a Universidade. Será que a teria acesso à rede? Haveria papel na impressora da Sala dos Professores? Talvez só encontrasse os pernilongos e os seguranças suados.
– Vamos agendar – disse o auditor com um livro enorme nas mãos. Pode ser na quinta-feira?
– Quinta-feira, 3 de janeiro de 2013? Vou perder o prazo! Minha Prestação de Contas será válida se for depois de amanhã?
– Calma, professor.
– O senhor não podia ficar com parte do meu pacote? Eu poderia protocolar com o senhor. Levaria um papel carimbado com a assinatura legível do senhor e depois brigaria com os mosquitos na Universidade com uma pequena raquete até conseguir acessar a Internet, levaria uma resma de papel de casa…
– Calma, professor. O senhor cumpriu o prazo de agendamento vindo pessoalmente até a FAPERJ. Sua documentação está quase totalmente correta.
– Existe Prestação de Contas totalmente correta?
– Francamente, o Modelo II é o mais difícil para os pesquisadores preencherem.
– Pois é. E eu achei que estava no Paraíso Contábil com essa Tabela Excel expandida. Sou doutor em Direito atrapalhado com todas essas máquinas incríveis que falham quando se mais depende delas.
– Professor, fique tranquilo. Temos uma quinta-feira, dia 13 de junho.
– Como? Peraí! Ouvi junho?
– Sim, 13 de junho de 2013. Pode ser a partir das 10 horas.
– Então…
– O senhor podia telefonar e agendar sua auditoria?
– Com a secretária Hum-Hum?
– O quê?
– Eu não precisava trazer todas as assinaturas legíveis e carimbadas hoje?
– Não. – Estava para terminar o prazo de agendamento do chamado “Exame Prévio” das Prestações de Contas. – Que hora será melhor para o senhor?
– Onze horas. – “O Demônio das Onze Horas.” – Está anotado na agenda. E estou fazendo por escrito seu comprovante, assinado por mim.
– O senhor não vai carimbar?
– Não precisa. O formulário é típico da FAPERJ. Feliz Ano Novo!
– Muitíssimo grato! Feliz Ano Novo!
O autor é professor universitário
cesarcaldeira@globo.com